quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

                           
    A falta que ele faz
    José Rezende
22/12/2010 - 22/12/2011 
                       


                     








                               Dignidade e honra

                                                                    

        "Estamos nos aproximando do primeiro aniversário de morte do pai de nosso pai.
Lembro de um episódio ocorrido no início da década de 1980 que poderia ter-lhe abreviado a vida, tal o desgosto que lhe causou.
        A história começou com a perda prematura do canadense Arne, seu grande amigo e aliado de todas as horas, desde a morte do patriarca Bartholdy. De repente a Empresa (Laticínios Campo Lindo) viu-se sem uma pessoa para gerenciar os negócios da filial no Rio de Janeiro.
        Na família do patriarca havia outro genro que estava disponível e desempregado. De meia idade e muito perspicaz,atendeu prontamente ao convite do papai para assumir a gerência comercial da Empresa, o que o fez com grande competência, tendo, em pouco tempo, conquistado o apoio dos outros sócios. 
         Para resumo da história, colocou nosso pai num total isolamento, culminando com sua retirada da Gerência de produção numa mudança contratual rasteira, na calada da noite. Pouco faltaria para que o 'velho' senhor ( este foi o argumento usado para colocá-lo num cargo simbólico de "Presidente Consultivo" da empresa) tivesse sido acometido de um enfarte, tal o grau de contrariedade que isto lhe acometera.
        Enfim, a história mostrou que sua capacidade de recuperação e sua dignidade em não reagir seria a melhor resposta pois seu caráter estava acima de qualquer baixaria e a volta por cima seria dada com vigor e intensidade. Este foi "seu Zeca",um homem de honra.
         Nossa homenagem e eterna gratidão pela lição de vida e abnegação, principalmente com nossa querida mãe Anna Menezes de Rezende. Que Deus os tenha num lugar reservado aos seguidores e discípulos mais fiéis,junto à Nossa Senhora Aparecida."

José Carlos de Rezende - 22/12/2011



Anita, Mariinha, Inês, Jane, Ana e José Carlos. Casa da Estação, início da década de 1950


                         Favacho
                                           

Favacho, Lobos, Olhos D’Água,  Campo Lindo:  esses eram os meus destinos. Mal dormia, nos meus dez anos, à espera desses lugares. A noite passava entre desejos e pesadelos.
Cinco horas da manhã, meu pai me chamava. Em um pulo só, eu me levantava, corria para o banheiro e, num segundo, tomava café, estava  de prontidão na porta do Ford F.600 verde que o Zé Raul pilotava.Papai trazia cuidadosamente a marmita que mamãe preparara na véspera.
Já acomodados na cabine do caminhão, Zé Raul dava marcha àquela repetida peregrinação e Zuza, lá na carroceria, ainda dormia pedaços da noite passada. Entre solavancos da estrada de terra, o dia nascia para mim como uma promessa de aventura.

Vagarosamente, a estrada se rendia. Cada quilômetro uma eternidade. Fazenda Nova, Dermeval, Xavier: todas as fazendas que passavam eram uma só. No olhar curioso do menino, em cada curva se abria uma descoberta. Uma serra aqui, um mata-burro logo ali, um pinheiro avultando na beira do rio.  O caminho guardava surpresas.
Lá ia eu entre meu pai e o Zé Raul olhando tudo. No horizonte que surgia na tela do caminhão como desenho de paraíso, paisagens desfilavam sedutoras. No caminho, poucos carros cruzavam conosco. De tempo em tempo, avistávamos uma silhueta de alguém cavalgando, nada mais.
No verão, a chuva de vários dias deixava a estrada tão enlameada que era preciso botar corrente nos pneus do caminhão. Só desse jeito era possível superar os sulcos profundos de barro e mesmo assim, nos trechos piores, não havia como evitar a derrapagem. Nessas horas, mais  forte do que o medo era o prazer de ficar atolado. Meu pai e Zé Raul logicamente não gostavam dessa situação, mas eu me encantava com todo o esforço e engenho para tirar o caminhão do atoleiro.
Fazenda dos Lobos
A primeira fábrica que a gente visitava era a do Olhos d’água. Seguia papai para desfrutar daquela deliciosa missão. Com o furador de prata, papai retirava de alguns queijos, escolhidos ao acaso na câmara fria, uma amostra para verificar se estavam em processo regular de maturação. Daquele pedaço, meu pai me dava sempre a metade, que eu comia solenemente como se estivesse experimentando a essência do queijo. O pedaço que restava era recolocado no pequeno buraco feito pelo furador. Até hoje não sei porque me enchia de orgulho ver aquela cicatriz que me lembrava que fora o eu o primeiro a conhecer a intimidade daquela forma de queijo.
 Nas outras fábricas, o ritual se repetia com a mesma cerimônia.
Depois dos Olhos d’água, nos dirigíamos, já com parte da carroceira carregada de queijos, para a fábrica dos Lobos. Apesar de nunca ter visto um lobo em minhas andanças, intrigava-me o nome daquela fazenda. Meu pai, pacientemente, me contava que, no passado, muitos lobos habitavam aqueles campos e que, até hoje, alguns poucos sobreviviam nas matas.

Fazenda Campo Lindo 
Cumprida a programação o próximo destino era a fazenda do Campo Lindo, nome também do Laticínios porque lá foi a primeira fábrica da empresa. O que mais me impressionava no Campo Lindo era a imponência do casarão colonial, de dezenas de janelas, onde morava o dono, Urbano Junqueira. Meu fascínio pelo lugar aumentava justamente por causa dele, o senhor Urbano. Muito rico, solteiro, na minha imaginação ele se igualava a um herói dos filmes e revistas, um cavalheiro de um tempo longínquo demais.
A vaca Jardineira, com seus mais de quarenta litros de leite de produção diária, despertava-me também grande admiração. Como não entendia como uma única vaca podia dar tanto leite, Jardineira passou a fazer parte também de meu imaginário. Aquilo não era um animal comum e, conforme comentavam Zuza e Zé Raul, por ser tão valiosa, Jardineira tinha instalações mais confortáveis do que muitas pessoas.
O roteiro terminava enfim na fazenda do Favacho. O caminhão com a carroceria quase cheia de queijo, estacionava no pátio da fábrica por volta das 10 e meia da manhã. Pelo menos para mim, aquele era o momento apoteótico da viagem.
Antes de entrarmos na fábrica, papai pegava as latas de marmita e nós quatro íamos para perto da caldeira. A comida já fria recuperava toda a energia no calor da caldeira. Instante mágico, enquanto Zé Raul e Zuza se acomodavam debaixo de uma árvore, eu celebrava junto de meu pai, hoje sei, o momento mais feliz de minha vida. Naqueles movimentos tão triviais, conquistava o que todo menino de minha idade gostaria de possuir: a segurança aconchegante da mãe combinada com o espírito de aventura proporcionado pelo pai.
Depois do êxtase, só queria mesmo um breve cochilo no gramado do Favacho.
Fazenda Favacho
                              

         Guilherme Jorge de Rezende- São João del-Rei, 27 de agosto de 2002

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


                    A falta que ele faz



Zeca e o neto Fernando, na casa de  São Vicente
A falta que ele faz doeu muito  a cada dia que passou nesses últimos 12 meses. Dia 22, quinta -feira que vem, celebramos a nossa saudade de papai. Saudade da proteção e segurança que sua presença entre nós inspirava. Ao perdê-lo, ficamos sem nossa referência principal, a nossa bússola de orientação. Mesmo nós, todos seus filhos e filhas com mais de sessenta anos de idade. Foi como se retornássemos a um período de nossas vidas, em que ele e mamãe nos conduziam pela mão. 


Família Menezes de Rezende com Ivone Norremose à direita e uma vizinha com a filha, à esquerda.
Guilherme está no colo da mãe. Márcio é o único ausente na foto. Casa da estação em São Vicente, 1951 
A saudade que evoca a sensação de perda também suscita sentimentos reconfortantes. Aprendemos com papai o valor de princípios essenciais a uma vida digna: a responsabilidade perante a si mesmo e aos outros, o trabalho como fonte de realização e sobrevivência, a honestidade em todas as relações.  De todas as virtudes, uma ele nos legou especialmente: a simplicidade. Nunca se deixou impressionar pelo sucesso como empresário e homem público, foi fiel aos seus familiares, aos amigos e aos empregados, com os quais convivia como se fosse um deles. Alguns até se tornaram seus amigos: Juquinha, Joãozinho, Renato, Joaquim, Roberto.
Da esquerda para direita: Bartholdy, Tio Carlito,  Zeca e  a filha Ana. São Vicente de Minas , por volta de 1954


Na lealdade a quem lhe deu oportunidades (Seu Bartholdy), ou foi incondicionalmente solidário (Tio Carlito, Arne) manifestava também o seu senso de gratidão e amizade.  Tamanha ou maior intensidade de afeto se notava no carinho que devotava  aos pais e ao irmão que morreu,  ao mais-que-irmão, Datinho, e às irmãs Semírames, Ondina e Maria Isabel. De tão grande, essa afeição se estendia a outros parentes, como os  primos queridos, Geraldo e Chichico. Que me perdoem aqui todos que aqui se incluem nessa lista e que não tiveram os nomes mencionados, parentes ou não. 


Os filhos na casa de Lavras: Inês, Guilherme, Jane, Dodora, Márcio, Ana e José Carlos 






















Depois de respirar fundo para enfrentar os efeitos de tantas recordações, começamos, a partir de hoje, neste blog e por outros meios de expressão, a resgatar a memória de Zeca, o irmão, o filho, amigo, o colega, o patrão, o marido, o avô, o PAI. Será uma maneira de ludibriar a morte e eternizar a sua existência. Só assim, poderemos resistir à dolorosa ausência e transformar a saudade em promessa de um glorioso reencontro em outras dimensões.





Bom dia Guilherme.

Tentei acessar os comentários mas não sei como funciona. De qualquer forma,estou lhe enviando fragmentos de uma tentativa de escrever alguma coisa que fiz em 2006,com forte cunho auto-biográfico.Vamos lá:

                                                                1958
                                                          
Era uma fria manhã de inverno e ele, um garoto de uns dez anos, esperava( com um sentimento que se aproximava mais de uma perda de algo muito querido ) seu pai que tomava café na sala de jantar.

O vento era cortante pois era agosto e esta era uma característica do clima na região montanhosa e solitária onde viviam. Embora bastante agasalhado nada podia desfazer aquela sensação de perda, a angustia da solidão, aliada ao receio do desconhecido. Com certeza esta era a sensação do que mais tarde viria a sentir novamente: um frio na barriga.

-Lourenço, onde está você? Não se esqueça de lavar as mãos antes de sairmos.Já colocou as suas coisas no carro?

Era sua mãe, uma senhora deliciosamente alegre e cativante, talvez um pouco alegre demais para os padrões, mas, sem dúvida, uma pessoa extremamente gentil.

Aparentava ser mais velha do que deveria, mesmo porque, apesar de toda a disposição que apresentava,viu-se acometida precocemente de uma doença neurológica que lhe fazia tremer as mãos e que, mais tarde, soube-se tratar do mal de Parkinson.

Disposição também não faltava ao pai, acostumado ao trabalho desde pequeno. Este aparentava ser mais jovem que sua mãe, até porque gozava de uma saúde de ferro.

Seria de bom alvitre agora apresentarmos ao leitor o motivo que levava a despertar no jovem Lourenço este sentimento de pura consternação.

É que no lugar onde moravam não havia como estudar após concluir o curso primário e, para prosseguir nos estudos, fazia-se mister que os jovens, mesmo que ainda crianças, fossem para um colégio interno,em outras cidades.

Paremos agora para refletir sobre esta situação em que se encontrava o desolado Lourenço: se ver, de repente, sozinho, num lugar estranho, distante de seus pais, de seus irmãos e amigos, de todas as coisas que lhe eram tão queridas e, porque não dizer, indispensáveis?

No sacolejar do carro na poeirenta estrada em que viajavam, ia Lourenço no banco traseiro, calado mas sem contestar, pois sabia ser isto inútil e que ainda poderia lhe custar umas boas palmadas.

Talvez a grande e maior lembrança do internato tenha sido quando, ao ser deixado no dormitório dos meninos menores, com sua pequena mala sobre a cama, ouviu o ruído de um carro que se afastava e, ao chegar na janela do segundo andar, conseguiu ainda rever o carro em que estavam seus pais se afastando e deixando um rastro de poeira e Lourenço na mais profunda solidão.”

Saudades.
José Carlos Rezende.





Oi José Carlos.
 Seu conto é profundamente tocante. Fiquei muito emocionado.
Abs.
Guilherme


Oi Guilherme,
Obrigado pelo que escreveu.
Eu já havia escrito sobre isto alguns anos atrás e coloquei no computador em 2006.
À época,o título era 1958 pois remetia também à copa na Suécia.
Enfim,faça dele o que lhe aprouver.O motivo continua sendo nossos pais.
Abraço.
José Carlos. 



O pai, Zeca, entre os filhos Guilherme, José Carlos e Márcio e os netos, Daniel (no colo de José Carlos) e Cláudio (ao lado do pai, Márcio). Casa de São Vicente, por volta de 1977.





Família Menezes de Rezende, por volta de 1949, em frente à casa da estação, em São Vicente de Minas. José Carlos está no colo da babá Mariinha

                          
Anita, "uma senhora alegre e cativante"