A falta que ele faz
José Rezende
22/12/2010 - 22/12/2011 |
Dignidade e honra
"Estamos nos aproximando do primeiro aniversário de morte
do pai de nosso pai.
Lembro de um episódio ocorrido no início da década de
1980 que poderia ter-lhe abreviado a vida, tal o desgosto que lhe causou.
A história começou com a perda prematura do canadense
Arne, seu grande amigo e aliado de todas as horas, desde a morte do patriarca
Bartholdy. De repente a Empresa (Laticínios Campo Lindo) viu-se sem uma pessoa para gerenciar
os negócios da filial no Rio de Janeiro.
Na família do patriarca havia outro genro que estava
disponível e desempregado. De meia idade e muito perspicaz,atendeu prontamente
ao convite do papai para assumir a gerência comercial da Empresa, o que o fez
com grande competência, tendo, em pouco tempo, conquistado o apoio dos outros sócios.
Para
resumo da história, colocou nosso pai num total isolamento, culminando com sua
retirada da Gerência de produção numa mudança contratual rasteira, na calada da
noite. Pouco faltaria para que o 'velho' senhor ( este foi o
argumento usado para colocá-lo num cargo simbólico de "Presidente
Consultivo" da empresa) tivesse sido acometido de um enfarte, tal o grau
de contrariedade que isto lhe acometera.
Enfim, a história mostrou que sua capacidade de
recuperação e sua dignidade em não reagir seria a melhor resposta pois seu caráter estava acima de qualquer baixaria e a volta por cima seria dada com
vigor e intensidade. Este foi "seu Zeca",um homem de honra.
Nossa homenagem e eterna gratidão pela lição de vida e
abnegação, principalmente com nossa querida mãe Anna Menezes de Rezende. Que Deus os tenha num lugar reservado aos seguidores e
discípulos mais fiéis,junto à Nossa Senhora Aparecida."
Anita, Mariinha, Inês, Jane, Ana e José Carlos. Casa da Estação, início da década de 1950 |
Favacho
Favacho, Lobos, Olhos
D’Água, Campo Lindo: esses eram os meus destinos. Mal dormia, nos
meus dez anos, à espera desses lugares. A noite passava entre desejos e
pesadelos.
Cinco horas da manhã, meu
pai me chamava. Em um pulo só, eu me levantava, corria para o banheiro e, num
segundo, tomava café, estava de
prontidão na porta do Ford F.600 verde que o Zé Raul pilotava.Papai trazia
cuidadosamente a marmita que mamãe preparara na véspera.
Já
acomodados na cabine do caminhão, Zé Raul dava marcha àquela repetida
peregrinação e Zuza, lá na carroceria, ainda dormia pedaços da noite passada.
Entre solavancos da estrada de terra, o dia nascia para mim como uma promessa
de aventura.
Vagarosamente,
a estrada se rendia. Cada quilômetro uma eternidade. Fazenda Nova, Dermeval,
Xavier: todas as fazendas que passavam eram uma só. No olhar curioso do menino,
em cada curva se abria uma descoberta. Uma serra aqui, um mata-burro logo ali,
um pinheiro avultando na beira do rio. O
caminho guardava surpresas.
Lá ia
eu entre meu pai e o Zé Raul olhando tudo. No horizonte que surgia na tela do
caminhão como desenho de paraíso, paisagens desfilavam sedutoras. No caminho,
poucos carros cruzavam conosco. De tempo em tempo, avistávamos uma silhueta de
alguém cavalgando, nada mais.
No
verão, a chuva de vários dias deixava a estrada tão enlameada que era preciso
botar corrente nos pneus do caminhão. Só desse jeito era possível superar os
sulcos profundos de barro e mesmo assim, nos trechos piores, não havia como
evitar a derrapagem. Nessas horas, mais
forte do que o medo era o prazer de ficar atolado. Meu pai e Zé Raul
logicamente não gostavam dessa situação, mas eu me encantava com todo o esforço
e engenho para tirar o caminhão do atoleiro.
Fazenda dos Lobos |
A
primeira fábrica que a gente visitava era a do Olhos d’água. Seguia papai para
desfrutar daquela deliciosa missão. Com o furador de prata, papai retirava de
alguns queijos, escolhidos ao acaso na câmara fria, uma amostra para verificar
se estavam em processo regular de maturação. Daquele pedaço, meu pai me dava
sempre a metade, que eu comia solenemente como se estivesse experimentando a
essência do queijo. O pedaço que restava era recolocado no pequeno buraco feito
pelo furador. Até hoje não sei porque me enchia de orgulho ver aquela cicatriz
que me lembrava que fora o eu o primeiro a conhecer a intimidade daquela forma
de queijo.
Nas outras fábricas, o ritual se
repetia com a mesma cerimônia.
Depois
dos Olhos d’água, nos dirigíamos, já com parte da carroceira carregada de
queijos, para a fábrica dos Lobos. Apesar de nunca ter visto um lobo em minhas
andanças, intrigava-me o nome daquela fazenda. Meu pai, pacientemente, me
contava que, no passado, muitos lobos habitavam aqueles campos e que, até hoje,
alguns poucos sobreviviam nas matas.
Fazenda Campo Lindo |
A vaca
Jardineira, com seus mais de quarenta litros de leite de produção diária,
despertava-me também grande admiração. Como não entendia como uma única vaca
podia dar tanto leite, Jardineira passou a fazer parte também de meu
imaginário. Aquilo não era um animal comum e, conforme comentavam Zuza e Zé
Raul, por ser tão valiosa, Jardineira tinha instalações mais confortáveis do
que muitas pessoas.
O
roteiro terminava enfim na fazenda do Favacho. O caminhão com a carroceria
quase cheia de queijo, estacionava no pátio da fábrica por volta das 10 e meia
da manhã. Pelo menos para mim, aquele era o momento apoteótico da viagem.
Depois do êxtase, só queria mesmo um breve cochilo no gramado do Favacho.