sábado, 29 de outubro de 2011

Baile da Estação

BAILE DA ESTAÇÃO 
                
           A estrada de ferro transportava quase tudo que chegava e saia da cidade. Todos os gêneros de bens materiais passavam pelo depósito e vagões: máquinas, peças de vestuário, cabeças de gado, frutas e legumes. Promovia também diariamente o intercâmbio de bens simbólicos. Nas correspondências que trazia e levava, circulavam relações de toda a natureza, das mais formais às de mais intensa carga afetiva.
            Mais do que carregar materiais ou símbolos, o trem era o caminho mais fácil para a locomoção de pessoas. Nos horários de chegada, a estação se transformava na principal praça da cidade, sobretudo nas vésperas de períodos festivos – Semana Santa, Natal, Carnaval- e início e término de férias escolares. Famílias inteiras enchiam a plataforma para receber ou se despedir de quem partia ou chegava. Casais de namorados compartilhavam juras e carícias ao descer ou antes de subir no vagão.
Dos trilhos vinha também o apelo para o novo, o desconhecido. O trem não servia apenas como meio de transporte. Território autônomo e corredor de passagens para outras dimensões, convertia-se em canal para expressão de outras identidades. Janela para os sonhos. através dele  era possível ligar-se aos heróis do mundo dos sonhos, prometido pelo cinema, as novelas de rádio, a cidade grande, o mar.
            Das muitas histórias que a estação de São Vicente de Minas ambientou como cenário, uma toca profundamente. Pela situação inusitada, talvez pareça mais produto da imaginação do que um fato da realidade. Essa distinção já não importa. A história se compõe de cenas com características tão ficcionais que bem poderia se traduzir no roteiro de um filme.
 Nas décadas de 1940 e 1950, quando o comboio apontava na curva, começava o alvoroço de Marinas e Veras, Luzias e Antônias, Teresas e Aparecidas, na plataforma da pequena estação de São Vicente de Minas.  A festa se anunciava pela fumaça da chaminé e o apito escandaloso da Maria-fumaça.
Na casa de Dona Anita, em frente à estação, da vitrola ressoava a música dos discos de vinil. Tudo estava preparado para mais um animado baile da estação. O trem percorria vagarosamente cada metro daquelas curvas, bufava de esperança como se fosse, mais do que uma simples máquina, um personagem da história que estava para acontecer.
No embalo de canções, boleros, sambas e valsas, a composição enfim rompia na reta de chegada. O trem invadia o porto, tal como os navios em contato paradisíacas terras recém-descoberta, flutuando nos trilhos, levado pela embriagante possibilidade de  aventura
A cada metro que cobria, o volume do som da vitrola aumentava, misturando-se com o ruído crescente da fricção das rodas de ferro nos trilhos.  Na plataforma da estação rapidamente se instalava um imenso salão de dança, enquanto, movida pelo ansioso canto de seu apito, a Maria-fumaça já não se continha em seu balanço.
Totalmente encantadas, as mocinhas de São Vicente retocavam as pinturas, os cabelos, as fantasias à espera dos futuros parceiros de dança. A vida começava ali, naquele momento, sem perspectivas mais permanentes além do tempo de duração de uma  parada em uma estação. O baile não se justificava por um sentido especial. Bastava-se como despretensiosa confraternização
Nos vagões, já se viam dezenas de moços, de todas as idades e procedências, a olharem pelas janelas. Alguns, marinheiros de primeira viagem, procuravam saber o motivo de tanto rebuliço. Informados por outros passageiros usuários freqüentes daquele trem, pouco a pouco se tornavam tão aflitos quanto as moças que esperavam na estação.
 Mal o trem começava a reduzir sua marcha, Paulos, Carlos, Pedros, Luises, Josés, que nem moleques enfeitiçados a reencontrar o brinquedo predileto, saltavam apressadamente, à procura do rosto da parceira do último baile da estação. Para os iniciantes naquela festa, não havia diferença entre as moças: pareciam tão lindas que era impossível escolher . 
Mais importante do que o reencontro da parceira, era a renovação de um ritual. Naqueles quinze ou vinte minutos – o tempo variava conforme o humor e a paixão do maquinista e chefe- de- trem – o que valia mesmo era o prolongamento daquele instante mágico. O que não se daria por um minuto a mais do prazer daquela festa.
Encerrada a dança, recolhidos os discos, as moças de São Vicente retomavam a rotina e os passageiros seguiam revigorados em  sua viagem. Ainda sob o fascínio da experiência, reconfortavam-se com a certeza de que, nos dias seguintes, no mesmo horário, o espetáculo se repetiria.
Os anos se passaram e, hoje, quando ando por uma estação abandonada, revivo toda a inquietação nas plataformas e nos vagões. Ouço os ecos da saudade no burburinho de vozes e nas imaginárias melodias que tocam sem parar. Vejo pelos olhos da nostalgia a animada coreografia a preencher todo o espaço da plataforma da estação. Sinto a vigorosa presença de Dona Anita, sempre sorridente, a reger aquele maravilhoso baile da estação.

Um comentário:

  1. Guilherme,
    duas belas histórias verdadeiras inaugurando JANELAS DA MEMÓRIA!Gostei muitíssimo que tenhas te encorajado a vir a público...bjs AuGraca

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